domingo, 4 de dezembro de 2011

Dois futebóis

Dois Futebóis

Final do campeonato de futebol. Frente a frente, dois rivais históricos. Pedro Augusto é um típico fã de esportes. Seu time está na final. Como em todo jogo importante, Pepê, como é conhecido entre os mais chegados, convida os amigos para irem em casa. Juntam algumas latas de cerveja, litros de vodca, tequila, limão, carne, pão, farofa e salada. Fazem um belo churrasco e, a cada brecha, ouve-se um "Chupa!" acompanhado do nome do time rival. Seus vizinhos ficam loucos. Em um bairro tradicional da cidade, Pepê e seus amigos se divertem o domingo inteiro, provocando os rivais (principalmente os vizinhos) e acompanhando o esporte bretão.

Do outro lado da cidade, um pouco distante do centro, vive Estéfano. O nome, uma homenagem do pai ao bisavô, destoava entre os amigos. Tanto que era tratado pelo apelido de "Orelha", esse, uma homenagem dos amigos aos seus atributos físicos. Orelha é um fã do futebol e de todo o universo em volta. Não perde um jogo de seu time. Sempre que possível (e, as vezes, impossível), toma o trem, metrô, ônibus e vai ao estádio acompanhar seu time. Na sua humilde visão, sem ele no estádio o time perde parte da força. Grita o nome do time do começo ao fim. Na alegria e na tristeza. Hoje é a grande final e Orelha sente-se orgulhoso de ter acompanhado todos os jogos do time em sua cidade. Alguns até como visitante.

Começa o jogo. As arquibancadas estão lotadas. Metade para cada time, como tem que ser em uma final dessas. O time do Orelha começa indo pra cima, mas o time de Pepê tem uma defesa sólida. Em casa, Pepê reclama do treinador, que escalou um time retranqueiro e contra o belo futebol. Cita os grandes times da Europa, que jogam o futebol espetáculo e comenta que, no Brasil, o futebol morreu. Orelha é só nervos. Xinga os adversários com a certeza de que estes estão ouvindo. Mesmo com um paredão de policiais dividindo as torcidas. Grita o nome do time, pede raça, vibra, discute com os fiéis amigos de arquibancada. Pepê nota que a cerveja está acabando e, no finalzinho do primeiro tempo, sai correndo de casa para comprar mais. Orelha xinga o ambulante que vende aquela cerveja quente a um preço nada convidativo. O primeiro tempo acaba em zero. Orelha finalmente se senta no cimento da arquibancada, para guardar forças para o segundo tempo. Pepê está voltando pra casa, buzinando, com a bandeira tremulando amarrada ao carro e gritando com os vizinhos na rua. É só festa! Já Orelha não sorri. Apenas xinga, reclama e grita o nome do seu time. De vez em quando solta um aplauso, sério, para uma bela jogada. O segundo tempo começa.

O jogo continua muito truncado e Pepê reclama do seu time, que defende muito mais do que ataca. Orelha reclama do juiz, segundo ele, mal intencionado, picareta, filho de um monte de mulheres sujas. Até que, numa jogada de contra-ataque, o time de Orelha marca. Explosão de felicidade! Orelha se abraça a um velho que está no degrau abaixo do dele. Nunca o viu na vida, mas sabe que pode confiar em alguem que torce para seu time. Pepê explode! Seus xingamentos agora são para o time todo. Todos vendidos, pernas-de-pau, torcedores do time adversário. Num acesso de raiva, desliga a televisão e sai chutando o saco de lixo onde estavam as latinhas. Quase derruba o copo de vodca com limão de um dos amigos. O ambiente se torna pesado, chato. Apenas o amigo que cuida da churrasqueira não se retira do local. Ele liga a televisão e, surpresa, penalti para seu time. Chama os amigos, que voltam correndo e ficam esperando a reprise da jogada. "Penalti claro!", brada Pepê. Orelha é só ódio. Não existem mais ofensas possíveis que ele possa desferir ao juiz. Sua raiva é incontrolável. Gol. No momento do gol do adversário, Orelha e a torcida começam a cantar para incentivar seu time. O jogo não está perdido para eles. Pepê, em casa, sobe no muro que divide sua casa com a casa da rua de trás e grita. Grita muito. Xinga os vizinhos, dispara dezenas de "Chupa!" e vai ao delírio. Enche um copo de tequila, sal e limão nas mãos e faz um brinde. Nesse momento, um dos vizinhos do sobrado ao lado sai na janela, lança um olhar de desaprovação à Pepê e volta pra casa. Pepê mostra o dedo do meio para o vizinho já de costas e manda mais um "Chupa!".

Faltando dez minutos para o fim da peleja, os ânimos estão alterados. Ninguém se atreve a dizer como terminará este jogo. Orelha está tenso. Sua voz já se foi tem uns minutos, agora, é só no pulmão. Mas ele ainda grita. Um lance mais duro em campo, uma falta pouco amistosa e uma pancadaria se forma em campo. Orelha se exalta, vira-se para a torcida adversária e os xingamentos agora se tornam seu idioma. O nervosismo é claro dentro e fora de campo. A polícia precisa agir nas arquibancadas e no campo. Em casa, Pepê vê aquela cena e desaprova: "Viu, pai, é por isso que não vou ao estádio. Brasileiro não sabe torcer", afirma ele. A briga é controlada e o jogo reinicia. Num escanteio, a três minutos do final, gol. Pepê, em casa, extravasa: "É campeão, porra! Chupa! Chupa! Não tem pra ninguém seus fregueses malditos!". Orelha não se abala. Continua cantando e acreditando.

Mas o jogo acaba. Orelha se junta aos amigos para sair do estádio. Todo cuidado é pouco, mas ele não liga. Apenas o silêncio e muita revolta. Xingam a diretoria e o juiz. Na despedida dos amigos, já no trem, combinam um enconto antes do próximo jogo. Num bar qualquer, com cerveja gelada, aperitivos e amigos. O assunto certamente será seu time do coração.

Pepê é só alegria. Rojões de doze tiros, morteiros e mais xingamentos. Terminam a garrafa de tequila que sobrou e se reunem em frente de casa. Muito barulho e algazarra, felicidade sem fim. Decidem ir comemorar a vitória de seu time num dos barezinhos do centro boêmio da cidade. Arrancam em seus carros gritando e xingando. Seu vizinho vê aquela cena e se pergunta: "Se esse rapaz gosta tanto de futebol, por que não vai a um estádio torcer? Eita molecada esquisita". Esses velhos não entendem nada.